Vice-presidente da Associação Brasileira de Fisioterapia Dermatofuncional, Rogério Mendonça de Carvalho , concedeu entrevista exclusiva ao ESTETIKA DIGITAL .
Desde janeiro deste ano, quando a ABRAFIDEF, Associação Brasileira de Fisioterapia Dermatofuncional , publicou um parecer favorável sobre o uso racional de substâncias e∕ou medicamentos e procedimentos injetáveis pelo fisioterapeuta em sua prática clínica , as redes sociais ficaram em polvorosa. De um lado, muita gente comemorando o posicionamento público da entidade em favor dessa forte demanda de fisioterapeutas . De outro, comentários de que não é nada disso , que isso não muda em nada a atual situação do fisioterapeuta em relação aos injetáveis e que só a publicação no Diário Oficial seria válida. Para esclarecer esses e outros pontos, ESTETIKA DIGITAL conversou com o vice-presidente da ABRAFIDEF, o fisioterapeuta dermatofuncional Rogério Mendonça de Carvalho , que é docente de fisioterapia dermatofuncional pela Universidade Federal de Uberlândia, pós-doutor em ciência cirúrgica transdisciplinar pela Escola Paulista de Medicina, especialista em fisioterapia intensiva, autor e proponente da matriz de competências do primeiro programa de residência em fisioterapia dermatofuncional. Acompanhe a entrevista na íntegra.
Na prática, o que o parecer da ABRAFIDEF significa?
ROGÉRIO MENDONÇA: O parecer ABRAFIDEF nº 03/2022 significa que a associação científica responsável por representar a especialidade de fisioterapia dermatofuncional em todo o território nacional reconheceu como próprias do fisioterapeuta, no âmbito de sua prática clínica independente, a prescrição e aplicação de diversas substâncias injetáveis de fase líquida como adjuvantes à prevenção, proteção, promoção, recuperação e manutenção das funções de seus pacientes , na mais ampla abordagem de sua saúde biopsicossocial. O peso desse posicionamento é de extrema magnitude orientativa direcionada aos profissionais fisioterapeutas, ao sistema de autarquias que fiscaliza tais atividades e à população usuária, de modo a consolidar práticas que já são utilizadas pela profissão há mais de um quarto de século em sua rotina clínica.
Por lei há proibição do fisioterapeuta dermatofuncional realizar procedimentos injetáveis?
ROGÉRIO MENDONÇA: Não há . Nem ao fisioterapeuta dermatofuncional e tampouco no que se refere às demais 14 outras especialidades da profissão , entre elas a fisioterapia neurofuncional, a fisioterapia em reumatologia e a fisioterapia em saúde da mulher (veja lista completa em https://www.coffito.gov.br/nsite/?page_id=2350 ). Tal proibição seria inconstitucional , uma vez que violaria o inciso XIII do artigo 5º de nossa carta magna , combinado com diversas leis, decreto-lei, resoluções COFFITO (Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional) e do Ministério da Educação no que tange à prática clínica de primeiro contato de fisioterapeutas.
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Se não há uma lei que permita nem que proíba, por que existe a discussão se o fisioterapeuta dermatofuncional pode ou não realizar procedimentos injetáveis?
ROGÉRIO MENDONÇA: Não se trata de discussão, mas, sim, de um esclarecimento mais ostensivo e assertivo acerca da legitimidade de tais procedimentos no âmbito do livre exercício da fisioterapia . Daremos um exemplo mais concreto que vez ou outra gera dúvidas infundadas: nós fisioterapeutas sempre tivemos a prerrogativa-dever de solicitar, executar e interpretar quaisquer exames laboratoriais e de imagem que venham a subsidiar nossa prática clínica de primeiro contato. Isso está presente em resolução COFFITO , em nossas Diretrizes Curriculares Nacionais e também na literatura internacional . Mesmo assim, alguns laboratórios ainda insistem em se negarem a realizar tais exames sob solicitação fisioterapêutica. Quando assim o fazem, sempre que litigados invariavelmente perdem na justiça . Em relação aos injetáveis ocorre situação semelhante. Já existem ao menos duas legislações COFFITO que embasam o uso de técnicas injetáveis por fisioterapeutas há mais de uma década no Brasil: o acórdão 293 de 2012 sobre a carboxiterapia e a resolução 380 de 2010 , que abarcou a ozonioterapia . Somado a isso, o uso de recursos injetáveis de fase líquida na rotina fisioterapêutica está presente há mais de 25 anos em guidelines da Chartered Society of Physiotherapy , organização britânica que é o berço da profissão no mundo, tendo recebido a chancelaria real em 1920 pelas mãos do rei George V, avô da rainha Elizabeth II, que faleceu recentemente. As últimas diretrizes foram publicadas em fevereiro de 2021 e já estão em sua 6ª. edição (aqui está o link www.csp.org.uk/system/files/publication_files/PD003_Feb2021%20Therapeutic%20injection-therapy%20in%20physiotherapy%20practice.pdf). O mesmo documento considera punções , como as feitas em espaços articulares, como sendo parte da terapia com injeção e sob escopo da atuação fisioterapêutica .
Diante de tudo o que foi dito, qual a necessidade de fazer esse posicionamento público?
ROGÉRIO MENDONÇA: O posicionamento público ocorre no contexto atual em que cresce vertiginosamente o interesse de pacientes que já vêm sendo atendidos por fisioterapeutas de maneira extremamente eficaz e segura no que tange à aplicação de substâncias injetáveis , além de alguns questionamentos mais frequentes de fisioterapeutas em geral e dermatofuncionais em particular a respeito desse assunto. A ausência de lei federal não limita o exercício fisioterapêutico na seara dos recursos injetáveis . Nosso decreto-lei 938 de 1969 é extremamente amplo , como deve ser uma boa legislação matricial de profissão clínica de primeiro contato. A regulamentação COFFITO que pavimentou a aplicação extensiva das substâncias injetáveis de fase líquida , sob o ponto de vista do bom direito consuetudinário, já foi citada na resposta anterior.
Esse posicionamento da ABRAFIDEF dá aos fisioterapeutas dermatofuncionais o respaldo legal para realizar os procedimentos injetáveis? Se não, o que falta para haver a legalização?
ROGÉRIO MENDONÇA: Não dá e nem retira . Somente orienta, ratifica e o consolida . O respaldo legal, para fisioterapeutas utilizarem quaisquer recursos injetáveis de fase líquida como exclusivamente adjuvantes à sua prática clínica, sempre existiu . Vamos a dois exemplos concretos para que, mais uma vez, se possa entender de forma ilustrativa. O primeiro: um fisioterapeuta dermatofuncional que trata uma ruga no rosto de seu paciente lança mão de massagens com substâncias farmacológicas abrasivas e rubefacientes previamente por ele prescritas. Esse mesmo profissional estuda minuciosamente ações, pontos de origem e inserção de cada músculo cuticular da face e conhece onde aplicar uma toxina botulínica para obter o melhor resultado a longo prazo de forma a minimizar sulcos e linhas de expressão. Segundo: ao tratar uma cicatriz hipertrófica , o fisioterapeuta dermatofuncional aplica laser, manipulações profundas do tecido conjuntivo, terapia com vácuo, ultrassom, órteses compressivas de uso prolongado e a corticoterapia intralesional para acentuar a regressão da sequela. Perceba-se que, em ambos os casos, os recursos injetáveis de fase líquida são indicados como adjuvantes a conjuntos de abordagens insofismavelmente clássicas da fisioterapia . Em tais situações, referenciar tais pacientes para quaisquer outros profissionais somente para aplicação suplementar de substâncias injetáveis, além de ser atitude antiética por conceber encaminhamento com condutas a observar, subverteria a principal característica que define a fisioterapia , quer seja o tratamento da função com prática clínica de primeiro contato. Isso quer dizer que nenhum paciente é obrigado a passar por nenhum outro profissional de saúde antes de buscar ajuda fisioterapêutica . Tal obviedade foi reconhecida recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça , no âmbito do julgamento do Recurso Especial nº 1.592.450/RS , com sentença em sede de embargos de declaração proferida aos 22 de novembro de 2022.
Diante da atual situação, o que pode acontecer se a vigilância sanitária fiscalizar uma clínica de estética onde o profissional de fisioterapia realiza procedimentos injetáveis? Ele receberá punição? De que tipo? Mesmo tendo pós em dermatofuncional e cursos de capacitação e seu espaço estando regular?
ROGÉRIO MENDONÇA: Não deverá receber nenhuma punição da vigilância sanitária, conforme a pergunta, se o local estiver regular sob o ponto de vista sanitário , com alvarás em dia e devidas adequações de descarte de perfurocortantes, dentre outros aspectos. A fiscalização sobre a atuação fisioterapêutica e seus recursos é de exclusividade do sistema de autarquias regionais CREFITOs , e regulamentada exclusivamente por seu Conselho Federal. À ANVISA e vigilância sanitária em geral cabem o controle sanitário dos locais e a promoção de estudos e manifestação sobre a concessão de patentes de produtos e processos farmacêuticos.
O fato da ABRAFIDEF se posicionar a favor da realização dos procedimentos injetáveis aliado à recente aprovação do COFFITO da residência em fisioterapia dermatofuncional mostra um cenário favorável para a aprovação por lei da aplicação de injetáveis? Por quê?
ROGÉRIO MENDONÇA: Sim. Todavia, enxergamos esse fato de maneira um tanto diferente. O cenário nunca foi tão favorável a uma vindoura e virtuosíssima resolução COFFITO acerca dos injetáveis de fase líquida . Muito mais para assegurar parâmetros de formação mínima, biossegurança e manejo de eventos adversos , do que para legitimar técnicas que já estão no domínio da prática clínica cotidiana de fisioterapeutas, sobretudo nas especialidades dermatofuncional, traumato-ortopédica e até esportiva . Confunde-se muito a função de cada instrumento normativo . Leis federais devem sempre analisar assuntos de maior amplitude , como é o caso da lei nº 6316 de 1975 que criou o sistema COFFITO/CREFITOs . Ao COFFITO, e somente a ele, cabe a regulamentação de métodos e técnicas fisioterapêuticas . Mesmo nesses casos, raramente a autarquia federal dedica uma legislação específica para cada submodalidade de determinada técnica. É o caso da eletroestimulação nervosa transcutânea , conhecida pela sigla em inglês “TENS”, que não tem uma resolução COFFITO somente para ela. Tanto é assim que no transcurso do julgamento do Recurso Especial STJ nº 1.592.450/RS citado acima e antes da sentença final daquela corte, a UNIMED, talvez certa de uma decisão favorável à parte litigante, sentiu-se à vontade para avocar esse recurso eletroterapêutico clássico da fisioterapia como “ato médico”. Quanto à resolução CNRMS nº 05 de 23 de dezembro de 2023 , que aprovou a matriz de competências para o primeiro programa de residência de fisioterapia dermatofuncional do mundo , é fruto de trabalho dedicado e incansável de professores da Universidade Federal de Uberlândia, ABRAFIDEF, CREFITO de Minas Gerais e COFFITO, dentre outros atores importantíssimos e refletiu reconhecimento de uma das mais altas e plurais comissões do MEC (com presença de fisioterapeutas, médicos, enfermeiros, cirurgiões-dentistas e suas respectivas autarquias) sobre a prerrogativa de fisioterapeutas na prática clínica de primeiro contato , prescrevendo e utilizando, dentre inúmeros outros recursos, as substâncias injetáveis de fase líquida como adjuvantes à função .
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Qual o argumento da ABRAFIDEF para a capacidade do fisioterapeuta dermatofuncional realizar procedimentos injetáveis?
ROGÉRIO MENDONÇA: Fisioterapeutas são profissionais clínicos de primeiro contato forjados na lida rotineira de situações complexas , com sólida formação em procedimentos de anamnese, estudo dos aparelhos musculoesquelético, neurossensorial, cardiorrespiratório, urogenital, vascular e tegumentar, além de bioquímica, farmacologia, anatomia, neuroanatomia e fisiopatologia das mais diversas condições de saúde. A fisioterapia, tal qual a odontologia e medicina, prepara seus bacharéis desde o primeiro ano para serem tomadores de decisão lastreada por formulação da diagnose fisioterapêutica de acordo com a Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF), planejamento fisioterapêutico baseado em evidências, prescrições, encaminhamento, elaboração de laudos e pareceres, além de instituição privativa da alta fisioterapêutica. Nesse contexto, a aplicação de terapias injetáveis de fase líquida sequer constitui-se na situação mais complexa , sendo precedida, por exemplo, por atuação em ambientes intensivistas para tratamento de lesões por pressão, aplicação, manejo e alteração de parâmetros de ventilação mecânica em UTIs e também uso de eletroestimulação transcraniana , todas bastante arraigadas na profissão.
Por procedimentos injetáveis, podemos considerar estes listados no parecer: intradermoterapia, incluindo skinbooster, microagulhamento, hidrolipoclasia ultrassônica não aspirativa, preenchedores semipermanetes (inclui bioestimuladores), procedimento injetável para microvasos (escleroterapia), toxina botulínica, terapia neural, ozonioterapia, autólogos (plasma rico em plaquetas e plasma rico em fibrina), terapia fotodinâmica e fotosensibilizadores e fios de sustentação?
ROGÉRIO MENDONÇA: Sim, dentre outros que venham a ser adjuvantes à função e ao tratamento fisioterapêutico.
De que maneira o senhor responde às críticas de que a questão dos injetáveis seria essencial à própria continuidade de subsistência da fisioterapia sob o ponto de vista mercadológico?
ROGÉRIO MENDONÇA: Isso definitivamente é um erro . O foco na segurança do paciente, bem como o manejo adequado e seguro de técnicas complexas, como são os casos dos injetáveis de fase líquida, deve sempre preceder o interesse e as pressões de mercado . A demanda por fisioterapeutas a cada dia aumenta , ao mesmo passo do envelhecimento de nossa população e com a busca cada vez maior por procedimentos mais conservadores e eficazes . Nesse sentido, a fisioterapia é das profissões menos ameaçadas pela chamada tecnologia 4.0 , de automação ou de inteligência artificial, por manter o toque terapêutico , com contato humano direto, como elemento basilar e essencial de sua formação. Portanto, injetáveis de fase líquida são importantes, sim, para a fisioterapia como um todo e para a especialidade dermatofuncional em particular . Porém, como recurso fisioterapêutico adjuvante à funcionalidade e de maneira a salvaguardar a sua inerente prática clínica de primeiro contato.